“A gramática não ‘estabelece’ a norma culta” – equívocos do livro “Preconceito Linguístico”

No famoso livreto Preconceito Linguístico: o que é, como se faz, Marcos Bagno critica os gramáticos por dizerem que “A Gramática normativa estabelece a norma culta“. Segundo Bagno, seria um absurdo dizer algo desse tipo, pois…

“não é a gramática normativa que “estabelece” a norma culta. A norma culta simplesmente existe como tal. A tarefa de uma gramática seria, isso sim, definir, identificar e localizar os falantes cultos, coletar a língua usada por eles e descrever essa língua de forma clara, objetiva e com critérios teóricos e metodológicos coerentes.” (Preconceito linguístico, 2007, p. 65)

No entanto, essa crítica de Bagno simplesmente não tem fundamento. O que Bagno faz é apenas se negar a reconhecer um uso bastante comum que o verbo “estabelecer” possui. Notem os exemplos abaixo:

Ex. 1: “Jacobus Cornelius Kapteyn estabeleceu as dimensões da nossa galáxia…” (Fonte: aqui)

Ex. 2: “Mustier (…) estabeleceu as dimensões da fraude depois de interrogar Kerviel durante toda a noite de sábado.” (Fonte: aqui)

Ninguém jamais imaginaria que essas frases significam que as dimensões da galáxia ou da fraude inexistiam antes de Kapteyn ou antes do interrogatório de Kerviel, tendo sido criadas por estes. O significado de “estabelecer” nesses exemplos não é o de “criar”, mas o “determinar” (no sentido de “descobrir”) ou “organizar e formalizar explicitamente” alguma informação.

O mesmo ocorre na frase criticada por Bagno acima. Quando os gramáticos dizem que “a gramática normativa estabelece a língua“, eles já estão dizendo exatamente aquilo que Bagno alega, contra eles, que seria a visão correta sobre o tema: a gramática define e identifica os usuários da linguagem culta e descreve os usos dessa linguagem de modo claro e objetivo.

É muito estranho que alguém como Bagno, que afirma celebrar a diversidade e variação lingüística, se irrite tanto com aquilo que é simplesmente um dos significados bastante comuns de um verbo como “estabelecer”.

Em suma, não há razão, portanto, na crítica feita por Bagno. O motivo real de seua crítica não é algum erro presente na declaração dos gramáticos, mas sim uma divergência que há entre Bagno e estes com relação a quais devem ser os critérios para identificar e descrever a linguagem culta . Para os gramáticos, a linguagem culta a basear a norma linguística deve ser encontrada na alta literatura, naqueles autores e obras cujo valor sobrevive ao teste do tempo. Para Bagno, ao contrário, a linguagem culta a servir de modelo de norma linguística deve ser encontrada no que ele chama de “língua culta real”, que é a linguagem das pessoas tidas como cultas na atualidade, o que, na prática, é simplesmente a linguagem de hoje das classes altas, ou seja, os modismos passageiros dos ricos e endinheirados, que estejam em posições mais altas da escala social. Por algum motivo estranho, Bagno considera que sua própria abordagem é mais democrática e mais popular e que, portanto, deve substituir completamente a abordagem “elitista e discriminatória” dos gramáticos. Mas isso é um tema para outro texto.

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *