Linguística, linguagem e “o importante é a comunicação”

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Um dos maiores estereótipos sobre a Linguística é a ideia de que, para esta, “o importante é (apenas) a comunicação“. Em geral, essa ideia está associada ao marcosbagnismo em seu movimento de repúdio à gramática tradicional, de combate ao “preconceito linguístico” e de rancor contra a norma padrão.

Há pelo menos dois problemas aí. Primeiro, apesar de defender várias ideias questionáveis, Bagno não defende que a única coisa que importa na língua é a comunicação. Ele até escreveu um pequeno texto na internet, muitos anos atrás, criticando essa posição. Afinal, isso seria renegar, por exemplo, toda a dimensão artística e estética da linguagem.

Mas o que eu realmente queria apontar é que não existe nenhum consenso dentro da linguística em geral quanto à ideia de que a função BÁSICA (mas não única) da linguagem seja a comunicação.

Existe há quase dois séculos a discussão se a função básica da linguagem é a comunicação OU a expressão do pensamento.

Os comparativistas do século XIX acreditavam que a expressão do pensamento era o fato básico da linguagem, sendo a comunicação um aspecto secundário e derivado. Na atualidade, os gerativistas (chomskyanos) também acreditam nisso.

O estruturalismo da primeira metade do século XX é quem assume ferrenhamente a ideia de que a função básica da linguagem é a comunicação. Saussure, essencialmente, vê as línguas como sistemas simbólicos arbitrários, logo, sistemas voltados para transmitir informações/mensagens, voltados para a comunicação.

Outras visões teóricas, como alguns funcionalismos, rejeitam enfaticamente essa ideia estruturalista de que a função da linguagem é comunicação, a transmissão de informações, justamente porque isso pressupõe uma visão esquemática, linear e “bonitinha” demais do processo de comunicação, apenas como atos de codificação e decodificação de mensagens, anulando completamente vários aspectos da interação linguística.

Por isso, os funcionalistas falam da língua como meio de interação social. Mesmo quando eles dizem que é preciso estudar a “competência comunicativa” dos falantes ou estudar “a língua em situações reais de comunicação”, o que eles querem apontar é justamente que a comunicação real é uso da língua como meio de interação, não de comunicação no sentido mais seco e direto.

Curiosamente, porém, muitos estudantes de Letras (e até professores…) imaginam que é exatamente o contrário: que os tolos estruturalistas achavam que a linguagem era expressão do pensamento, mas que as teorias mais modernas vieram mostrar que, na verdade, a linguagem era meio de comunicação. Mas isso é um outro assunto.

Enfim, o lema de que “o importante é a comunicação” é apenas uma enorme distorção das ideias da linguística, distorção provocada pelo desejo de simplificar demais para os estudantes a visão real da Linguística: a ideia de que todas as línguas e dialetos são sistemas altamente complexos que não podem ser desprezados por influência de questões políticas e de estereótipos.

Essa confusão também é estimulada pela vontade de instrumentalizar a ciência da linguagem como uma arma de luta política e de promoção de luta de classes, com a tentativa de associar a norma padrão à opressão (capitalista), criando a tolice de que a completa rejeição à norma padrão e à tradição e análise gramatical seria uma espécie de libertação.

Na prática, algum tipo de norma linguística é necessária em sociedades complexas, não por causa do sistema ser capitalista, mas justamente por a sociedade ser complexa, diversificada e altamente dependente dos meios de escrita. Mesmo uma suposta versão socialista  da sociedade atual continuaria tendo o mesmo grau de complexidade e continuaria, por isso, precisando de algum tipo de norma linguística.

Aliás, numa sociedade socialista, em que a planificação estatal da produção e da vida em geral é elemento essencial, a existência de uma norma linguística seria muito muito muito mais necessária do que na sociedade capitalista, em que há muito mais espaço para o caos construtivo.

Mas esse é um outro assunto. O ponto principal aqui é: a linguagem humana não pode ser reduzida apenas a uma questão de “o importante é a comunicação”.

– Rerisson Cavalcante de Araújo

Professor de Linguística da Universidade Federal da Bahia

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“A gramática não ‘estabelece’ a norma culta” – equívocos do livro “Preconceito Linguístico”

No famoso livreto Preconceito Linguístico: o que é, como se faz, Marcos Bagno critica os gramáticos por dizerem que “A Gramática normativa estabelece a norma culta“. Segundo Bagno, seria um absurdo dizer algo desse tipo, pois…

“não é a gramática normativa que “estabelece” a norma culta. A norma culta simplesmente existe como tal. A tarefa de uma gramática seria, isso sim, definir, identificar e localizar os falantes cultos, coletar a língua usada por eles e descrever essa língua de forma clara, objetiva e com critérios teóricos e metodológicos coerentes.” (Preconceito linguístico, 2007, p. 65)

No entanto, essa crítica de Bagno simplesmente não tem fundamento. O que Bagno faz é apenas se negar a reconhecer um uso bastante comum que o verbo “estabelecer” possui. Notem os exemplos abaixo:

Ex. 1: “Jacobus Cornelius Kapteyn estabeleceu as dimensões da nossa galáxia…” (Fonte: aqui)

Ex. 2: “Mustier (…) estabeleceu as dimensões da fraude depois de interrogar Kerviel durante toda a noite de sábado.” (Fonte: aqui)

Ninguém jamais imaginaria que essas frases significam que as dimensões da galáxia ou da fraude inexistiam antes de Kapteyn ou antes do interrogatório de Kerviel, tendo sido criadas por estes. O significado de “estabelecer” nesses exemplos não é o de “criar”, mas o “determinar” (no sentido de “descobrir”) ou “organizar e formalizar explicitamente” alguma informação.

O mesmo ocorre na frase criticada por Bagno acima. Quando os gramáticos dizem que “a gramática normativa estabelece a língua“, eles já estão dizendo exatamente aquilo que Bagno alega, contra eles, que seria a visão correta sobre o tema: a gramática define e identifica os usuários da linguagem culta e descreve os usos dessa linguagem de modo claro e objetivo.

É muito estranho que alguém como Bagno, que afirma celebrar a diversidade e variação lingüística, se irrite tanto com aquilo que é simplesmente um dos significados bastante comuns de um verbo como “estabelecer”.

Em suma, não há razão, portanto, na crítica feita por Bagno. O motivo real de seua crítica não é algum erro presente na declaração dos gramáticos, mas sim uma divergência que há entre Bagno e estes com relação a quais devem ser os critérios para identificar e descrever a linguagem culta . Para os gramáticos, a linguagem culta a basear a norma linguística deve ser encontrada na alta literatura, naqueles autores e obras cujo valor sobrevive ao teste do tempo. Para Bagno, ao contrário, a linguagem culta a servir de modelo de norma linguística deve ser encontrada no que ele chama de “língua culta real”, que é a linguagem das pessoas tidas como cultas na atualidade, o que, na prática, é simplesmente a linguagem de hoje das classes altas, ou seja, os modismos passageiros dos ricos e endinheirados, que estejam em posições mais altas da escala social. Por algum motivo estranho, Bagno considera que sua própria abordagem é mais democrática e mais popular e que, portanto, deve substituir completamente a abordagem “elitista e discriminatória” dos gramáticos. Mas isso é um tema para outro texto.