Clivagem: clivadas canônicas, invertidas e sem cópula

Sentenças clivadas são sentenças partidas em duas pela introdução de uma cópula “é” e um “que”. Em (2), temos um exemplo da versão clivada da sentença não-clivada em (1).

(1) João viajou pra Aracaju.

(2) FOI João QUE viajou pra Aracaju.

A cópula pode se flexionar em tempo (“foi”, “era”), mas também é número e em pessoa, como em (3-5):

(3) Fui eu que comprei esse livro.

(4) Sou eu que vou comprar esse livro.

(5) Será que você pode comprar esse livro?

O sintagma entre a cópula e o “que” é chamado de elemento clivado. Este pode corresponder ao sujeito da sentença, como nos exemplos anteriores, mas também a outras funções sintáticas, como o complemento ou adjunto do verbo lexical. Portanto, quanto ao tipo de sintagma, ele pode ser um SN (sintagma nominal), SPrep (sintagma preposicional) ou SAdv (sintagma adverbial), como em (6-9):

(6) Foi esse livro que eu comprei… [objeto direto, SN]

(7) É com Maria que ele conversa bastante. [objeto indireto/oblíquo, SPrep]

(8) Foi pra Aracaju que João viajou… [adjunto adverbial, SPrep]

(9) Foi ontem que João viajou… [adjunto adverbial, SAdv

A subparte da sentença que é precedida pelo “que” é muitas vezes considerada uma oração relativa, mas existe muito debate sobre qual é realmente a estrutura sintática subjacente às clivadas.

O sintagma clivado também pode ser movido para antes da cópula, como em (10-15) resultando no que chamamos de “clivada invertida“, por oposição à “clivada canônica” dos exemplos anteriores.

(10) Esse livro foi que eu comprei ontem.

(11) Com Maria é que ele conversa bastante.

(12) Pra Aracaju é que João viajou.

(13) Ontem foi que João viajou.

(14) João foi que viajou pra Aracaju.

(15) Eu fui que comprei esse livro.

No português brasileiro (mas não no português europeu), também é possível omitir a cópula, resultando em sentenças como (16-20), chamadas de “clivadas sem cópula”:

(16) Esse livro que eu comprei ontem.

(17) Com Maria que ele conversa bastante.

(18) Pra Aracaju que João viajou.

(19) Ontem que João viajou.

(20) João que viajou pra Aracaju.

(21) Eu que comprei esse livro.

Existem também estruturas chamadas de sentenças “pseudo-clivadas”, que devem ser consideradas um tipo de sentença diferente e de que trataremos em outro texto.

Cinco tipos de sentenças interrogativas

As sentenças interrogativas são um tipo de frase ou oração cuja principal função é realizar uma pergunta, um pedido de informação ao ouvinte. Por isso, também são chamadas de “perguntas”.

Vamos usar os termos “interrogativas” e “perguntas” como sinônimos nesse texto, assim como o fazem vários autores, mas é importante salientar que “perguntas” têm mais a ver com a função exercida por esse tipo de sentença e o terno “interrogativas” tem mais a ver com o tipo estrutural delas.

Podemos identificar cinco subtipos de sentenças interrogativas, a saber: (i) as perguntas polares; (ii) as perguntas QU, estas contendo vários subtipos diferentes; (iii) as perguntas alternativas; (iv) as perguntas-eco; (v) e as tag questions.

Veja um vídeo sobre este conteúdo:

 

1. INTERROGATIVAS POLARES

Também chamadas de interrogativas sim/não (ou yes/no questions), as polares são sentenças interrogativas em que se interroga sobre a totalidade da proposição expressa pela sentença. A resposta típica a uma pergunta polar é do tipo afirmativa ou negativa, como nos exemplos de (1) a (3).

(1) Maria vem pra festa?

(2) Você já pagou a conta de luz?

(3) Está chovendo?

Notem que a resposta típica será algo que confirme ou negue todo o conteúdo da sentença. Isso pode ser feito através das partículas “sim” ou “não”, mas também de outras expressões que produzam o mesmo efeito.

No português brasileiro, por exemplo, não é tão comum responder com “sim”. Ao invés disso, costumamos utilizar o verbo finito usado na própria pergunta, como em (4). Também podemos responder com advérbios como “já” em (5) ou “nunca”.

(4) A: Está chovendo?
B: Está.

(5) A: Você já pagou a conta de luz?
B: Já.

(6) A: Maria vem pra festa?
B: Nunca!

É claro que outras respostas também não possíveis para perguntas polares, como “não sei”, “esqueci”, “não lembro”, “não fale comigo” etc. Por isso, estamos falando das respostas típicas.

 

2. INTERROGATIVAS QU

Também são chamadas de interrogativas parciais ou interrogativas de constituinte. Neste tipo de pergunta, o objetivo não é obter uma confirmação sobre a proposição inteira, mas completar uma lacuna na proposição. Isso ocorre porque uma parte da sentença é substituída por um pronome interrogativo, representando a informação que se deseja obter.

A resposta típica a essa pergunta é um sintagma que preencha a posição ocupada pelo pronome interrogativo. A quantidade de diferentes respostas possíveis é ilimitada, mas todas do mesmo tipo.

(7) A: O que você comprou?
B: Sapatos. / Um relógio novo. / Ingressos para o cinema.

(8) A: Maria se encontrou com quem no shopping?
B: Com João. / Com uns amigos. / Com ninguém.

(9) A: Qual filme nós vamos assistir?
B: Qualquer um. / O (filme) que você quiser. / O filme novo de Nolan.

(10) Quando ele chegou?
B: Ontem. / Na semana passada. / Agora há pouco.

O nome “perguntas QU” deriva do fato de que, em português, a maioria dos pronomes interrogativos é escrito com as letras iniciais “Q” e “U”. Na literatura em inglês, esse tipo de sentença é chamado de “WH questions”, uma vez que a maioria dos pronomes dessa língua se escreve com essas duas letras.

Há vários subtipos de perguntas interrogativos, levando em consideração a quantidade e a posição dos pronomes interrogativos na sentença, mas isso é tema para um texto dedicado especificamente a esse tipo de interrogativas.

 

3. PERGUNTAS ALTERNATIVAS

As perguntas alternativas já apresentam em sua formulação as possibilidades (bastante limitadas) de resposta esperadas pelo falante. Em português, elas possuem uma estrutura do tipo “ou… ou…”, em que a primeira conjunção “ou” pode ser omitida.

Elas funcionam como duas (ou mais) orações coordenadas, mesmo que a última costume ocorre de modo elíptico.

(11) Você mandou a mensagem por email ou (mandou por) por telegram?

(12) Maria comprou esse apartamento ou alugou?

(13) Isso vai facilitar ou vai dificultar as coisas?

(14) Nós vamos na segunda, (vamos ) na terça ou (vamos) na quarta?

Entre os casos de perguntas alternativas, podemos dar destaque a um tipo que se assemelha bastante às perguntas polares, pois as opções apresentadas são a versão afirmativa e a versão negativa do mesmo predicado, o que faz com que a resposta típica esperada seja novamente do tipo sim ou não, como nos exemplos de (15) a (17).

(15) Você vem ou não (vem)?

(16) Maria gosta dele ou não (gosta)?

(17) Vamos sair ou não (vamos)?

Ainda assim, faz sentido considerar tais perguntas como alternativas, uma vez que envolvem uma coordenação através de uma conjunção alternativa.

 

4. PERGUNTAS-ECO

As perguntas-eco poderiam ser vistas como um subtipo das perguntas QU. De fato, a maioria dos materiais trata as perguntas-eco dessa forma. O problema é que isso faz com que simplesmente sejam esquecidas na maioria dos materiais sobre as sentenças interrogativas. Por isso, julgamos melhor destacar esse tipo aqui. Além do mais, há diferenças importantes entre as verdadeiras perguntas QU e as perguntas-eco.

A principal diferença não é a estrutura, mas a função pragmática. As perguntas-eco são formalmente interrogativas QU, mas não são efetivamente pedidos de informação nova, mas expressões de surpresa e/ou pedidos para a repetição de algo que acabou de ser dito. Nos exemplos de (18) a (19), o interlocutor não está buscando uma informação nova.

(18) A: Eu dei um murro no síndico do prédio.
B: Você deu um murro em QUEM?! No síndico?

(19) A: Maria beijou João.
B: Ela beijou QUEM?! Em João, o marido de Aline?!

Outra diferença importante entre as interrogativas QU normais e as perguntas eco é que as últimas não permitem que o pronome interrogativo seja movido para a esquerda da sentença.

Nas interrogativas QU verdadeiras, esse movimento é permitido ou mesmo obrigatório, a depender da língua. No inglês, o movimento do QU é obrigatório. No português brasileiro, é opcional. Mas, nas perguntas-eco, tal movimento não ocorre, seja no inglês, seja no português.

(20) Quem (que) Maria beijou? [interrogativa QU normal com movimento]

(21) Maria beijou quem? [interrogativa QU normal sem movimento]

(22) Maria beijou QUEM?! (pergunta eco)

Essa diferença pode decorrer justamente do fato de que as pergunta-eco não são perguntas de verdade, ao menos do ponto de vista semântico.

As perguntas-eco não devem ser confundidas com as perguntas retóricas, apesar de terem o efeito semelhante de aparentemente não serem perguntas de fato. A diferença é que as perguntas retóricas não são apenas do tipo QU, mas podem ser polares, QU ou alternativas. Outra diferença entre as retóricas e as perguntas-eco é que as retóricas são usadas sim como perguntas, mas como perguntas cuja resposta é assumida pelo ouvinte como óbvias ou como tão vagas que devem despertar antes a reflexão sobre o assunto ao invés de uma resposta imediata dos ouvintes.

 

5. TAG QUESTIONS

As tag questionas (para as quais não existe um bom termo em português)  são perguntas reduzidas, que ocorrem ao final de uma frase declarativa, como forma de pedir pela confirmação do conteúdo desta.

(23) Você vem pra cá amanhã, não vem?

(24) João já chegou, ?

(25) Maria é argentina, num é?

(26) Joana não foi pra aula ontem, foi?

 

OUTRAS CLASSIFICAÇÕES

Além desses cinco tipos, também podemos classificar as sentenças interrogativas em perguntas diretas ou indiretas. Não se trata exatamente de um sexto tipo de interrogativas, mas sim da posição em que as interrogativas citadas previamente (ou, ao menos, a maioria delas) pode ocorrer.

As perguntas diretas são sentenças matrizes (principais), ao passo que as perguntas indiretas são as mesmas perguntas, mas inseridas em uma posição de subordinação, ou seja, como uma oração encaixada/subordinas.

Em (27) e (28), temos exemplos de uma pergunta polar e um pergunta QU diretas (matrizes. Em (29) e (30), temos as mesmas perguntas, mas como orações subordinadas, como perguntas indiretas.

(27) Maria vem pra festa? (pergunta polar direta)

(28) O que você comprou? (pergunta QU direta)

(29) João perguntou [ se Maria vem pra festa ]. (pergunta polar indireta)

(30) João perguntou [ o que você comprou]. (pergunta QU indireta)

Em português, as perguntas polares, quando indiretas, são introduzidas pela conjunção completiva “se”. Já as perguntas QU indiretas diferem das diretas pelo fato de que o movimento do pronome interrogativo passa a ser obrigatório. Não é possível manter o pronome dentro do sintagma verbal.

“Pensamento crítico” – Fabio Blanco

Texto do professor Fabio Blanco:

Pais, com ares de que irão tomar uma grande decisão, saem de casa garbosos, em busca de uma escola na qual confiarão seus filhos. A oferta é grande e as promessas infinitas. Escolhem uma que na propaganda afirma que aplica os métodos mais modernos da pedagogia. Como tudo o que é moderno parece bom, marcam uma reunião com a diretora. Ao chegarem à escola ficam encantados com a ordem e segurança do local. No entanto, como são pais que se preocupam em proporcionar a melhor formação para suas crianças, ficam seduzidos pela promessa de que ali os alunos são estimulados a desenvolverem, desde cedo, um pensamento crítico.

Aqueles pais, já imaginando, cheios de orgulho, seus filhos vociferando, numa tribuna qualquer, à maneira de uma Greta Thunberg, contra os males da sociedade, assinam o contrato e voltam para casa aliviados, certos de que cumpriram sua missão.

A escola, então, cumprindo fielmente o prometido, começa a estimular as crianças a olharem para a sociedade de maneira a examiná-la, avaliá-la e julgá-la. Não demora e logo surge uma redação sobre algum tema espinhoso (pode ser sobre as queimadas na Amazônia, o racismo estrutural, a participação feminina na política ou mesmo sobre os altos índices de criminalidade).

Não importa que aqueles pequenos infantes não tenham a mínima ideia do assunto que vão tratar; que não tenham a mínima capacidade de tecer qualquer comentário sobre o tema; que não saibam nada da vida, nem tenham estudado nada sobre a matéria. O que importa, para os novos pedagogos, é que, sendo estimuladas a dar suas opiniões, fortalecerão sua capacidade de criticar, que é o objetivo pedagógico declarado.

Desenvolver o pensamento crítico até seria louvável. O problema é querer fazer isso desde muito cedo, estimulando as crianças a darem opinião sobre o que não têm a mínima noção, viciando-as em serem palpiteiras e a falar sem ter dedicado um mínimo de atenção e espaço ao assunto abordado.

Obviamente que, ao serem estimuladas a isso, aprendem a concentrar-se em seus próprios raciocínios, valorizando seus próprios processos cognitivos, enquanto desprezam a riqueza do conhecimento acumulado pela sociedade e os próprios fatos.

O resultado desse tipo de aprendizagem é a exaltação da opinião, não do conhecimento. Com o tempo, o apego às concepções pessoais torna-se tão forte que o aluno já não consegue conceber outras “verdades” senão aquelas que ele mesmo consegue formular. Suas opiniões acabam confundidas com a própria realidade.

Alguns métodos educativos modernos, portanto, tornam os jovens intelectualmente autofágicos e cognitivamente egocêntricos. São capazes de gerar falastrões, mas dificilmente formarão filósofos.

Isso é uma traição à própria missão da pedagogia, que não é fazer o aluno mergulhar para dentro de si mesmo, em um processo de retroalimentação de suas próprias concepções, mas conduzi-lo para além de suas experiências e perspectivas, colocando-o em contato com a riqueza de sabedoria que existe no mundo.

Na verdade, o objetivo da educação é tornar o aluno menos confiante em relação ao que pensa saber e fazê-lo desconfiar do que sabe, despertando nele o desejo de buscar o conhecimento fora, onde quer que o conhecimento esteja.

O fato é que educar (do latim ex ducere, ou seja, levar para fora) é tirar o indivíduo de dentro de si, de seu mundinho reflexo unicamente de suas sensações imediatas; é fazê-lo ver as coisas de maneira indireta; é ensiná-lo a olhar por outros prismas; é fazê-lo entender que o abismo entre o que se pode retirar da sua experiência direta e o que se pode absorver do conhecimento universal é imenso.

A função da educação é colocar o aluno em contato com o conhecimento universal. Se isso irá gerar nele um pensamento crítico, será meramente por um efeito indireto, porém nunca como meta; no máximo, como efeito indireto do desenvolvimento de uma mente capaz de ler a realidade.

Mensalidade em universidades federais?

UMA AVALIAÇÃO SÉRIA

O Congresso está discutindo a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) número 206, que estabeleceria a cobrança de mensalidade em universidades federais. Eu quero discutir alguns aspectos dessa proposta, mas de modo sério, nos seus argumentos “favoráveis” e “contrários”, ao invés de agir com um militante de algum dos lados, colocando-me 100% a favor ou 100% contra.

Analisar a questão friamente antes de se posicionar é simplesmente uma obrigação de qualquer intelectual sério, independentemente das vantagens ou desvantagens que a proposta possa trazer pessoalmente ao indivíduo. Infelizmente, a maioria dos que discutem esse tema simplesmente pensam em “isso vai me beneficiar ou me prejudicar pessoalmente?” e fingem que a resposta a essa questão é uma resposta sobre toda a sociedade.

 

QUAL É MESMO A PROPOSTA?

Em primeiro lugar, qual é a proposta? Em resumo, é de cobrança de mensalidade “dos ricos”, dos que “têm condições de pagar”. O texto da PEC mantém a gratuidade dos estabelecimentos públicos, mas estabelece uma exceção, que é a seguinte:

O art. 207 da Constituição Federal passa a vigorar acrescido do seguinte § 3º:
“§ 3º As instituições públicas de ensino superior devem cobrar mensalidades, cujos recursos devem ser geridos para o próprio custeio, garantindo-se a gratuidade àqueles que não tiverem recursos suficientes, mediante comissão de avaliação da própria instituição e respeitados os valores mínimo e máximo definidos pelo órgão ministerial do Poder Executivo.”

 

Traduzindo: haverá mensalidades nas universidades públicas, mas aqueles que não tiverem condições financeiras de pagar devem receber gratuidade.

 

ESQUERDA OU DIREITA: QUEM FEZ A PROPOSTA?

Eu estudei em escola pública a minha vida toda. Depois cursei universidade pública. E desde o meu ensino médio, na década de 1990, eu vejo essa proposta ser discutida. Para mim, o mais curioso disso tudo é que antigamente isso era uma proposta de esquerda. Eram pessoas de esquerda que viviam reclamando que “os ricos cursam universidade pública com o dinheiro dos impostos, enquanto os pobres têm que pagar universidades particulares”.

Inclusive, muita gente da esquerda propunha algo mais drástico do que a cobrança de mensalidade da classe média e alta. Propunham que tais pessoas fossem proibidas de cursar universidades públicas. Com a eleição de Lula em 2002, muita gente de esquerda esperava que passasse a haver pelo menos a cobrança de mensalidade, o que não aconteceu.

Hoje, essa mesma proposta é vista como coisa de direita e sofre oposição justamente da esquerda.

Mas notem: isso não é um argumento contra nem a favor da cobrança. É apenas um relato histórico. Um relato bem curioso, vocês não acham? O que será que mudou de lá para cá?

 

MAS E OS IMPOSTOS?

Algo que sempre me incomodou nessa proposta é o seguinte: as pessoas pagam impostos. E as federais são sustentadas por esses impostos. Notem que, nisso, as universidades são completamente diferentes das empresas estatais. Se você tem um carro, você vai pagar pela gasolina que consumir, independentemente de o posto ou a empresa de extração e refino ser pública ou privada. Você vai pagar pela energia elétrica que consumir, independentemente de a empresa de luz ser pública ou privada.

Na educação é diferente. Todo o país paga há décadas impostos mais altos do que deveriam ser justamente para custear as escolas e as universidades. Se for haver cobrança de mensalidade, vai haver redução dos impostos sobre a população, justamente para sobrar mais dinheiro com as pessoas, para elas escolherem se querem pagar a universidade ou não?

A minha tendência a rejeitar privatização do SUS ou de universidades federais tem muito menos a ver com esses discursinho vazio de “ain, viva a universidade pública, gratuita e de qualidade” do que com essa questão econômica básica: a privatização virá com redução drástica de impostos para o povão ter mais dinheiro? Sem isso, a conversa não deveria nem começar.

Mas tudo bem, a proposta não é de privatização. É apenas de mensalidade sobre os “mais ricos”. Mas o argumento ainda é válido. Se você odeia “os mais ricos”, isso é um problema psicológico seu. A questão é: eles também pagam impostos toda vez que compram produtos, etc. Por que eles deveriam pagar impostos, mas serem proibidos de usufruir do próprio objetivo para o qual os impostos são cobrados?

 

COMO É EM OUTROS PAÍSES?

Seja nos Estados Unidos (capitalista), na Europa (meio capitalista meio socialista) ou na China (comunista com capitalismo autorizado e dirigido), o normal nas universidades públicas é a cobrança de mensalidades, com exceções para quem não pode pagar e cumpre certas condições. Na verdade, nos EUA, ao menos, isso vale até para as chamadas universidades particulares. Universidades não-estatais criadas como fundações, como as mais tradicionais, sempre têm algum fundo destinado a conceder gratuidade a bons estudantes de baixa renda (mas aqui entra em vigor algum critério de competência acadêmica).

Ou seja, o Brasil não estaria inventando a roda se adotasse um modelo desse tipo. Na verdade, o modelo atual brasileiro é que é uma jabuticaba, praticamente inexistente nas partes importantes no mundo. (Isso é um fato, meu caro, você goste ou não).

E isso é claramente um argumento a favor da medida: com a gratuidade garantida para pessoas de baixa renda e que passaram no vestibular/Enem, ninguém pode dizer que tal medida seria para “excluir os pobres da universidade”. Se formos falar sério, o maior risco é exatamente o oposto: é, sem querer, excluir os pagantes. Quem tem dinheiro e for obrigado a pagar agora poderá se perguntar sempre: “se é para pagar, por que eu pagaria uma universidade pública e não uma universidade privada?”.

Esse cenário criaria justamente aquilo que parte da esquerda brasileira pedia antes (e ainda pede), que é a redução do número de ricos (reais ou supostos) nas federais, mas teria um efeito colateral: menos recursos para o custeio da própria universidade. Ainda que elas recebem recursos do governo por cada estudante de baixa renda matriculado, menos matrículas de pagantes significa menos recursos para melhorar as universidade, o campus, etc. E acreditem em mim: as federais sempre precisam de mais dinheiro. Sempre.

 

QUAL SERIA O CRITÉRIO?

Mas, finalmente, quem pagaria? Duas das expressões mais vagas do debate político brasileiro são “os pobres” e “os ricos”. Nos debates políticos nas universidades brasileiras, o critério para identificar pobre e rico sempre foi votar ou não votar na esquerda. O milionário que vota na esquerda é pobre. O pobre que anda de ônibus e mora em casa alugada, mas que não vota na esquerda, é acusado pelo amigo dele, que anda no mesmo ônibus, de “querer manter seus privilégios”. Vocês sabem que é verdade. Isso faz com que todo mundo sempre ache que rico é “o zotro”.

Bem, mas não dá para usar isso como critério na hora de definir quem vai pagar ou não vai pagar mensalidade. Qual seria o critério objetivo em termos de renda para a cobrança da mensalidade? O texto da PEC obviamente não diz, pois isso é detalhismo demais para constar na Constituição. Seria tarefa do MEC definir isso.

Há vantagens e desvantagens em isso ser definido pelo MEC. O critério para receber gratuidade poderia ficar cada vez mais rígido com o tempo, reduzindo o número de estudantes não-pagantes. Por outro lado, tal critério pode ser alterado de modo relativamente fácil com uma mudança de governo, que passasse a reduzir os critérios e aumentar o número de beneficiados. Para isso, entretanto, tal governo precisaria administrar melhor os impostos da população, evitando desperdícios em outras áreas, para sobrar para o custeio das gratuidades.

(Divagação: Eu tendo a achar que haveria mais governos de esquerda reduzindo a gratuidade do que governos de direita, por um motivo muito simples: só a esquerda consegue reduzir benefícios sociais sem perder votos e apoios dos supostos “defensores do social”. Por exemplo, foi justamente o governo Lula que privatizou metade da previdência dos servidores públicos e instituiu cobrança de INSS de quem já está aposentado, mas Lula continuou sendo idolatrado pelas “vítimas” dessa mudança. Mas isso já é uma divagação. Na prática, qualquer novo governo poderá aumentar ou diminuir as gratuidades. )

Provavelmente, a ideia é que o Brasil tenha muito mais gratuidades do que há em outros países. Não me parece nada viável que, ao menos nos primeiros dez ou vinte anos, se adote um modelo com um percentual muito grande de alunos pagantes. Mas seria preciso definir isso bem. Qual é o critério? Vai haver uma reserva percentual fixa de matrículas com gratuidade? Ou vai ser apenas questão de demanda, ou seja, se apenas 10% dos matriculados tiver recursos, só esses pagam, mas se houver 80% de matriculados com recursos, todos esses pagam?

Sinceramente, eu não acredito que haveria um grande número de gente com dinheiro disposta a cursar as federais, pagando mensalidade. Sempre seria uma minoria.

 

POSSÍVEIS CONSEQUÊNCIAS

Se a cobrança passar a ocorrer, a grande mudança é um aumento da concorrência entre universidades públicas e particulares. Como eu disse, os pagantes passariam sempre a se perguntar se valia mesmo a pena pagar mensalidade numa federal. Mas isso geraria outras consequências.

Provavelmente, passaria a existir mais pressão contra greves de docentes e haveria menos espaço para atividades que sejam percebidas como não relacionadas ao curso. Politização e militância política idiota nas universidades sempre existem e sempre vão existir, mas a tendência é haver alguma redução do espaço para isso, num contexto em que perda de estudantes significa perda de recursos.

 

MAS, FINALMENTE, QUAL É A MINHA POSIÇÃO?

Bem, a minha posição não é tão importante assim. Você deveria pesar os vários aspectos e julgar o que considera mais benéfico para a sociedade de um ponto de vista geral, sem pensar exclusivamente em você.

Pessoalmente, eu não sou grande fã da ideia (pela questão dos impostos), embora reconheça alguns méritos. Mas certamente sou completamente contrário a qualquer discursinho falacioso, que se opõe à proposta com base em argumentos completamente caricatos do tipo “querem destruir a educação” (vocês sabem muito bem qual é a qualidade atual da educação brasileira), “odeiam pobres e querem impedi-los de estudar” (prometer distribuir mais gratuidade sempre vai ser fonte de votos para políticos).