Mensalidade em universidades federais?

UMA AVALIAÇÃO SÉRIA

O Congresso está discutindo a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) número 206, que estabeleceria a cobrança de mensalidade em universidades federais. Eu quero discutir alguns aspectos dessa proposta, mas de modo sério, nos seus argumentos “favoráveis” e “contrários”, ao invés de agir com um militante de algum dos lados, colocando-me 100% a favor ou 100% contra.

Analisar a questão friamente antes de se posicionar é simplesmente uma obrigação de qualquer intelectual sério, independentemente das vantagens ou desvantagens que a proposta possa trazer pessoalmente ao indivíduo. Infelizmente, a maioria dos que discutem esse tema simplesmente pensam em “isso vai me beneficiar ou me prejudicar pessoalmente?” e fingem que a resposta a essa questão é uma resposta sobre toda a sociedade.

 

QUAL É MESMO A PROPOSTA?

Em primeiro lugar, qual é a proposta? Em resumo, é de cobrança de mensalidade “dos ricos”, dos que “têm condições de pagar”. O texto da PEC mantém a gratuidade dos estabelecimentos públicos, mas estabelece uma exceção, que é a seguinte:

O art. 207 da Constituição Federal passa a vigorar acrescido do seguinte § 3º:
“§ 3º As instituições públicas de ensino superior devem cobrar mensalidades, cujos recursos devem ser geridos para o próprio custeio, garantindo-se a gratuidade àqueles que não tiverem recursos suficientes, mediante comissão de avaliação da própria instituição e respeitados os valores mínimo e máximo definidos pelo órgão ministerial do Poder Executivo.”

 

Traduzindo: haverá mensalidades nas universidades públicas, mas aqueles que não tiverem condições financeiras de pagar devem receber gratuidade.

 

ESQUERDA OU DIREITA: QUEM FEZ A PROPOSTA?

Eu estudei em escola pública a minha vida toda. Depois cursei universidade pública. E desde o meu ensino médio, na década de 1990, eu vejo essa proposta ser discutida. Para mim, o mais curioso disso tudo é que antigamente isso era uma proposta de esquerda. Eram pessoas de esquerda que viviam reclamando que “os ricos cursam universidade pública com o dinheiro dos impostos, enquanto os pobres têm que pagar universidades particulares”.

Inclusive, muita gente da esquerda propunha algo mais drástico do que a cobrança de mensalidade da classe média e alta. Propunham que tais pessoas fossem proibidas de cursar universidades públicas. Com a eleição de Lula em 2002, muita gente de esquerda esperava que passasse a haver pelo menos a cobrança de mensalidade, o que não aconteceu.

Hoje, essa mesma proposta é vista como coisa de direita e sofre oposição justamente da esquerda.

Mas notem: isso não é um argumento contra nem a favor da cobrança. É apenas um relato histórico. Um relato bem curioso, vocês não acham? O que será que mudou de lá para cá?

 

MAS E OS IMPOSTOS?

Algo que sempre me incomodou nessa proposta é o seguinte: as pessoas pagam impostos. E as federais são sustentadas por esses impostos. Notem que, nisso, as universidades são completamente diferentes das empresas estatais. Se você tem um carro, você vai pagar pela gasolina que consumir, independentemente de o posto ou a empresa de extração e refino ser pública ou privada. Você vai pagar pela energia elétrica que consumir, independentemente de a empresa de luz ser pública ou privada.

Na educação é diferente. Todo o país paga há décadas impostos mais altos do que deveriam ser justamente para custear as escolas e as universidades. Se for haver cobrança de mensalidade, vai haver redução dos impostos sobre a população, justamente para sobrar mais dinheiro com as pessoas, para elas escolherem se querem pagar a universidade ou não?

A minha tendência a rejeitar privatização do SUS ou de universidades federais tem muito menos a ver com esses discursinho vazio de “ain, viva a universidade pública, gratuita e de qualidade” do que com essa questão econômica básica: a privatização virá com redução drástica de impostos para o povão ter mais dinheiro? Sem isso, a conversa não deveria nem começar.

Mas tudo bem, a proposta não é de privatização. É apenas de mensalidade sobre os “mais ricos”. Mas o argumento ainda é válido. Se você odeia “os mais ricos”, isso é um problema psicológico seu. A questão é: eles também pagam impostos toda vez que compram produtos, etc. Por que eles deveriam pagar impostos, mas serem proibidos de usufruir do próprio objetivo para o qual os impostos são cobrados?

 

COMO É EM OUTROS PAÍSES?

Seja nos Estados Unidos (capitalista), na Europa (meio capitalista meio socialista) ou na China (comunista com capitalismo autorizado e dirigido), o normal nas universidades públicas é a cobrança de mensalidades, com exceções para quem não pode pagar e cumpre certas condições. Na verdade, nos EUA, ao menos, isso vale até para as chamadas universidades particulares. Universidades não-estatais criadas como fundações, como as mais tradicionais, sempre têm algum fundo destinado a conceder gratuidade a bons estudantes de baixa renda (mas aqui entra em vigor algum critério de competência acadêmica).

Ou seja, o Brasil não estaria inventando a roda se adotasse um modelo desse tipo. Na verdade, o modelo atual brasileiro é que é uma jabuticaba, praticamente inexistente nas partes importantes no mundo. (Isso é um fato, meu caro, você goste ou não).

E isso é claramente um argumento a favor da medida: com a gratuidade garantida para pessoas de baixa renda e que passaram no vestibular/Enem, ninguém pode dizer que tal medida seria para “excluir os pobres da universidade”. Se formos falar sério, o maior risco é exatamente o oposto: é, sem querer, excluir os pagantes. Quem tem dinheiro e for obrigado a pagar agora poderá se perguntar sempre: “se é para pagar, por que eu pagaria uma universidade pública e não uma universidade privada?”.

Esse cenário criaria justamente aquilo que parte da esquerda brasileira pedia antes (e ainda pede), que é a redução do número de ricos (reais ou supostos) nas federais, mas teria um efeito colateral: menos recursos para o custeio da própria universidade. Ainda que elas recebem recursos do governo por cada estudante de baixa renda matriculado, menos matrículas de pagantes significa menos recursos para melhorar as universidade, o campus, etc. E acreditem em mim: as federais sempre precisam de mais dinheiro. Sempre.

 

QUAL SERIA O CRITÉRIO?

Mas, finalmente, quem pagaria? Duas das expressões mais vagas do debate político brasileiro são “os pobres” e “os ricos”. Nos debates políticos nas universidades brasileiras, o critério para identificar pobre e rico sempre foi votar ou não votar na esquerda. O milionário que vota na esquerda é pobre. O pobre que anda de ônibus e mora em casa alugada, mas que não vota na esquerda, é acusado pelo amigo dele, que anda no mesmo ônibus, de “querer manter seus privilégios”. Vocês sabem que é verdade. Isso faz com que todo mundo sempre ache que rico é “o zotro”.

Bem, mas não dá para usar isso como critério na hora de definir quem vai pagar ou não vai pagar mensalidade. Qual seria o critério objetivo em termos de renda para a cobrança da mensalidade? O texto da PEC obviamente não diz, pois isso é detalhismo demais para constar na Constituição. Seria tarefa do MEC definir isso.

Há vantagens e desvantagens em isso ser definido pelo MEC. O critério para receber gratuidade poderia ficar cada vez mais rígido com o tempo, reduzindo o número de estudantes não-pagantes. Por outro lado, tal critério pode ser alterado de modo relativamente fácil com uma mudança de governo, que passasse a reduzir os critérios e aumentar o número de beneficiados. Para isso, entretanto, tal governo precisaria administrar melhor os impostos da população, evitando desperdícios em outras áreas, para sobrar para o custeio das gratuidades.

(Divagação: Eu tendo a achar que haveria mais governos de esquerda reduzindo a gratuidade do que governos de direita, por um motivo muito simples: só a esquerda consegue reduzir benefícios sociais sem perder votos e apoios dos supostos “defensores do social”. Por exemplo, foi justamente o governo Lula que privatizou metade da previdência dos servidores públicos e instituiu cobrança de INSS de quem já está aposentado, mas Lula continuou sendo idolatrado pelas “vítimas” dessa mudança. Mas isso já é uma divagação. Na prática, qualquer novo governo poderá aumentar ou diminuir as gratuidades. )

Provavelmente, a ideia é que o Brasil tenha muito mais gratuidades do que há em outros países. Não me parece nada viável que, ao menos nos primeiros dez ou vinte anos, se adote um modelo com um percentual muito grande de alunos pagantes. Mas seria preciso definir isso bem. Qual é o critério? Vai haver uma reserva percentual fixa de matrículas com gratuidade? Ou vai ser apenas questão de demanda, ou seja, se apenas 10% dos matriculados tiver recursos, só esses pagam, mas se houver 80% de matriculados com recursos, todos esses pagam?

Sinceramente, eu não acredito que haveria um grande número de gente com dinheiro disposta a cursar as federais, pagando mensalidade. Sempre seria uma minoria.

 

POSSÍVEIS CONSEQUÊNCIAS

Se a cobrança passar a ocorrer, a grande mudança é um aumento da concorrência entre universidades públicas e particulares. Como eu disse, os pagantes passariam sempre a se perguntar se valia mesmo a pena pagar mensalidade numa federal. Mas isso geraria outras consequências.

Provavelmente, passaria a existir mais pressão contra greves de docentes e haveria menos espaço para atividades que sejam percebidas como não relacionadas ao curso. Politização e militância política idiota nas universidades sempre existem e sempre vão existir, mas a tendência é haver alguma redução do espaço para isso, num contexto em que perda de estudantes significa perda de recursos.

 

MAS, FINALMENTE, QUAL É A MINHA POSIÇÃO?

Bem, a minha posição não é tão importante assim. Você deveria pesar os vários aspectos e julgar o que considera mais benéfico para a sociedade de um ponto de vista geral, sem pensar exclusivamente em você.

Pessoalmente, eu não sou grande fã da ideia (pela questão dos impostos), embora reconheça alguns méritos. Mas certamente sou completamente contrário a qualquer discursinho falacioso, que se opõe à proposta com base em argumentos completamente caricatos do tipo “querem destruir a educação” (vocês sabem muito bem qual é a qualidade atual da educação brasileira), “odeiam pobres e querem impedi-los de estudar” (prometer distribuir mais gratuidade sempre vai ser fonte de votos para políticos).

Paulo Freire à esquerda e à direita

O texto abaixo é Alexandre Magno Fernandes Moreira e reflete a posição que considero a mais realista e sóbria sobre Paulo Freire, um autor que é idolatrado por uns e demonizado por outros, em ambos os casos por motivos completamente exagerados.

 

100 anos do nascimento de Paulo Freire: breves notas

1. Ele se tornou para a esquerda um símbolo de tudo o que é bom na educação. A direita, como reação, escolheu-o como um símbolo de tudo que há de ruim na educação brasileira. Na verdade, a direita foi além, condenando-o como o grande culpado das mazelas da educação brasileira.

2. Nenhuma das visões corresponde à realidade. A influência de Paulo Freire na educação brasileira, seja positiva ou negativa, é muito menor do que diz um lado ou outro.

3. Ele não criou a rigor uma pedagogia, mas expôs, de forma pouco estruturada e confusa, uma filosofia da educação. O único método efetivamente criado por ele se referiu à educação de jovens e adultos. Quase nada do que ele propôs foi aplicado e nem creio que seja aplicável.

4. Se a esquerda tem algum respeito por Paulo Freire, nunca deveria tê-lo colocado (por lei!) como patrono da educação brasileira. Isso é uma acusação e não uma homenagem.

5. A direita precisa evoluir e ultrapassar essa fixação em Paulo Freire. Essa é uma confissão de inépcia, de desconhecimento da história da educação brasileira e das diversas e complexas causas de seu fracasso.

6. Enfim, Paulo Freire é um personagem menor na história da educação brasileira. Porém, virou um ícone no debate público, divinizado por uns e demonizado por outros. Precisamos relegá-lo às empoeiradas bibliotecas dos cursos de Pedagogia e começar a resolver os problemas reais da educação brasileira.

Fonte: aqui.

 

A situação descrita acima é tão verdadeira que, diante das acusações de “causa do fracasso da educação brasileira”, uma defesa comum dos admiradores de Freire é dizer que: “mas o método Paulo Freire não é aplicado de verdade no Brasil em nenhum lugar“. Pois é. Se não é aplicado, tanto seus críticos quanto seus defensores estão completamente errados.

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Advertência: Se você é um graduando em pedagogia ou licenciatura, especialmente de uma universidade pública, para seu próprio bem, não saia esculhambando Paulo Freire nas aulas em que algum professor começar a exaltá-lo apenas com base em frasezinhas vazias sobre “amor” que não dizem nada sobre a educação real e que não refletem em nada a posição pedagógica real dele. Para que se indispor com os idólatras do culto a Freire que corrigem avaliações que você faz? E quem disse que VOCÊ tem alguma base cultural para realmente avaliar a questão de forma séria? Se você realmente tem interesse no tema, vá estudar por conta própria sobre história da educação, mas sempre procurando por visões diferentes.

Linguística, linguagem e “o importante é a comunicação”

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Um dos maiores estereótipos sobre a Linguística é a ideia de que, para esta, “o importante é (apenas) a comunicação“. Em geral, essa ideia está associada ao marcosbagnismo em seu movimento de repúdio à gramática tradicional, de combate ao “preconceito linguístico” e de rancor contra a norma padrão.

Há pelo menos dois problemas aí. Primeiro, apesar de defender várias ideias questionáveis, Bagno não defende que a única coisa que importa na língua é a comunicação. Ele até escreveu um pequeno texto na internet, muitos anos atrás, criticando essa posição. Afinal, isso seria renegar, por exemplo, toda a dimensão artística e estética da linguagem.

Mas o que eu realmente queria apontar é que não existe nenhum consenso dentro da linguística em geral quanto à ideia de que a função BÁSICA (mas não única) da linguagem seja a comunicação.

Existe há quase dois séculos a discussão se a função básica da linguagem é a comunicação OU a expressão do pensamento.

Os comparativistas do século XIX acreditavam que a expressão do pensamento era o fato básico da linguagem, sendo a comunicação um aspecto secundário e derivado. Na atualidade, os gerativistas (chomskyanos) também acreditam nisso.

O estruturalismo da primeira metade do século XX é quem assume ferrenhamente a ideia de que a função básica da linguagem é a comunicação. Saussure, essencialmente, vê as línguas como sistemas simbólicos arbitrários, logo, sistemas voltados para transmitir informações/mensagens, voltados para a comunicação.

Outras visões teóricas, como alguns funcionalismos, rejeitam enfaticamente essa ideia estruturalista de que a função da linguagem é comunicação, a transmissão de informações, justamente porque isso pressupõe uma visão esquemática, linear e “bonitinha” demais do processo de comunicação, apenas como atos de codificação e decodificação de mensagens, anulando completamente vários aspectos da interação linguística.

Por isso, os funcionalistas falam da língua como meio de interação social. Mesmo quando eles dizem que é preciso estudar a “competência comunicativa” dos falantes ou estudar “a língua em situações reais de comunicação”, o que eles querem apontar é justamente que a comunicação real é uso da língua como meio de interação, não de comunicação no sentido mais seco e direto.

Curiosamente, porém, muitos estudantes de Letras (e até professores…) imaginam que é exatamente o contrário: que os tolos estruturalistas achavam que a linguagem era expressão do pensamento, mas que as teorias mais modernas vieram mostrar que, na verdade, a linguagem era meio de comunicação. Mas isso é um outro assunto.

Enfim, o lema de que “o importante é a comunicação” é apenas uma enorme distorção das ideias da linguística, distorção provocada pelo desejo de simplificar demais para os estudantes a visão real da Linguística: a ideia de que todas as línguas e dialetos são sistemas altamente complexos que não podem ser desprezados por influência de questões políticas e de estereótipos.

Essa confusão também é estimulada pela vontade de instrumentalizar a ciência da linguagem como uma arma de luta política e de promoção de luta de classes, com a tentativa de associar a norma padrão à opressão (capitalista), criando a tolice de que a completa rejeição à norma padrão e à tradição e análise gramatical seria uma espécie de libertação.

Na prática, algum tipo de norma linguística é necessária em sociedades complexas, não por causa do sistema ser capitalista, mas justamente por a sociedade ser complexa, diversificada e altamente dependente dos meios de escrita. Mesmo uma suposta versão socialista  da sociedade atual continuaria tendo o mesmo grau de complexidade e continuaria, por isso, precisando de algum tipo de norma linguística.

Aliás, numa sociedade socialista, em que a planificação estatal da produção e da vida em geral é elemento essencial, a existência de uma norma linguística seria muito muito muito mais necessária do que na sociedade capitalista, em que há muito mais espaço para o caos construtivo.

Mas esse é um outro assunto. O ponto principal aqui é: a linguagem humana não pode ser reduzida apenas a uma questão de “o importante é a comunicação”.

– Rerisson Cavalcante de Araújo

Professor de Linguística da Universidade Federal da Bahia

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Conservadorismo na educação (Samuel Eliot)

O tema de hoje é educação. Trazemos a tradução de um texto do historiador e educador Samuel Eliot em que ele aponta que, em educação, ao invés de buscar as invenciones mais modernas apenas por serem novidades, é preciso identificar os princípios permanecentes da educação, que são imutáveis justamente por estarem baseados na própria natureza humana.

Boa leitura. Continue lendo “Conservadorismo na educação (Samuel Eliot)”