3.1 Do subconjunto para o superconjunto
O acarretamento para cima (upward entailing) é o tipo mais comum e mais básico de acarretamento (entailment) e, normalmente, é designado simplesmente como “acarretamento”, sem nenhuma especificação adicional. Trata-se de uma relação em que o acarretamento ocorre em direção ao superconjunto. Ou seja, toda vez que a sentença acarretada expressar um elemento ou propriedade que é um superconjunto dos elementos ou propriedades da sentença acarretadora, teremos acarretamento para cima.
O “upward” ou “para cima”, portanto, se refere a essa relação em direção do subconjunto mais encaixado para o superconjunto da relação. Tomemos outro par de exemplos.
(11) João almoçou camarão ontem.
(12) João almoçou ontem.
Vemos que a sentença (11) acarreta a sentença (12). Por outro lado, a sentença (12) não acarreta a sentença (11).
Consideremos as propriedades expressas pelos predicados. Temos dois predicados. Em (11), temos o predicado “almoçar-camarão-ontem”; em (12), o predicado “almoçar-ontem”. Note que, entre os eventos expressos por esses predicados, temos uma relação de subconjunto. Todos os eventos de “almoçar-camarão-ontem” são um subconjunto dos eventos de “almoçar-ontem”. “Almoçar-ontem”, então, é um conjunto que abarca “almoçar-camarão-ontem”.
Dito de outra forma, o conjunto de todas as pessoas que almoçaram ontem abarca, como um de seus subconjuntos, o conjunto de todas as pessoas que almoçaram camarão ontem. Portanto, a direção do acarretamento foi justamente do subconjunto (“almoçar-camarão-ontem”) para o superconjunto (“almoçar-ontem”).
Figura 1: Direção do acarretamento para cima.
(Representação compatível com a sentença 11)
A Figura acima ilustra isso. Temos dois conjuntos representados nela. O “j” indica o indivíduo João. Se este está incluído no subconjunto de “indivíduos que almoçaram camarão ontem”, então obrigatoriamente, ele também está dentro do conjunto de “indivíduos que almoçaram ontem”. Portanto, a presença em um elemento num subconjunto qualquer indica simultaneamente a sua presença no superconjunto que o abarca.
Note, porém, que o inverso não é necessariamente verdadeiro. É perfeitamente possível que João estivesse presente dentro do conjunto maior, mas fora do conjunto menor, fora do subconjunto. Nesse caso, a sentença (12) seria verdadeira, mas a (11) seria falsa. Por isso é que (11) acarreta (12), mas (12) não acarreta (11). Logo, nesse caso, o acarretamento não vai do superconjunto para o subconjunto.
Em todos os exemplos anteriores, de (1) a (10), tínhamos casos de acarretamento para cima.
3.2 Do superconjunto para o subconjunto
Por outro lado, há casos em que a situação se inverte. Por exemplo, se estivermos lidando com as versões negativas das sentenças (11) e (12), representadas em (13) e (14), a direção do acarretamento se altera.
(13) João não almoçou camarão ontem.
(14) João não almoçou ontem.
Agora, o acarretamento se inverteu. A sentença (13) não acarreta a sentença (14). Se for verdade que “João não almoçou camarão ontem”, continua sendo perfeitamente possível que “João não almoçou ontem” seja falsa; basta que João tenha almoçado qualquer outra coisa, diferente de camarão. Por outro lado, agora a sentença (14) acarreta a sentença (13). Se “João não almoçou ontem” é verdade, então é necessariamente verdade que “João não almoçou camarão”.
Em termos de conjuntos, o conjunto de indivíduos que almoçaram camarão ontem continua sendo um subconjunto do conjunto de indivíduos que almoçaram ontem. Mas as sentenças em (13) e (14) correspondem à negação da presença de João nesses conjuntos. Assim, (14) indica que João não está presente no subconjunto, mas seria perfeitamente possível que ele fizesse parte do superconjunto. Então, (14) não acarreta (13), ao contrário do que ocorre com as versões afirmativas dessas sentenças.
Por outro lado, a sentença (13) indica que João não está presente no conjunto maior, no superconjunto. Nesse caso, a ausência dele no superconjunto indica necessariamente a sua ausência no subconjunto, como ilustra a representação abaixo na Figura 2, em que o “j” representa João. Portanto, a ausência (ou negação) no superconjunto acarreta a ausência no subconjunto. Temos um caso de acarretamento para baixo (downward entailing).
Figura 2: Direção do acarretamento para baixo
(Representação compatível com a sentença 13)
Em suma: há o acarretamento para cima quando o acarretamento é em direção ao superconjunto; há acarretamento para baixo quando o acarretamento é em direção ao subconjunto.
- Contextos de acarretamento para baixo
Nas próximas subseções, veremos alguns dos contextos que forçam necessariamente o acarretamento para baixo.
4.1 Negação
A negação é o contexto por excelência em que ocorre a inversão das relações de acarretamento. Os dois conjuntos de sentenças abaixo ilustram isso. Nas sentenças afirmativas em (15), o acarretamento é na direção de (c) para (a): a sentença (15a) Maria viajou de carro para São Paulo acarreta tanto que Maria viajou para São Paulo quanto que Maria viajou; e a sentença (15b) Maria viajou para São Paulo, por sua vez, acarreta que Maria viajou. Trata-se de casos de acarretamento para cima, como ilustrado na direção da seta[1].
(15) a. Maria viajou.
b. Maria viajou para São Paulo.
c. Maria viajou de carro para São Paulo.
(16) a. Maria não viajou.
b. Maria não viajou para São Paulo.
c. Maria não viajou de carro para São Paulo.
Nas sentenças negativas em (16), por outro lado, o acarretamento vai na direção de (a) para (c): a sentença (16a) Maria não viajou acarreta que Maria não viajou para São Paulo e que Maria viajou para São Paulo; e a sentença (16b) Maria não viajou para São Paulo, por sua vez, acarreta que Maria não viajou de carro para São Paulo. A negação inverteu a direção do acarretamento, que, agora, é para baixo, na direção do subconjunto, como ilustra a seta.
O leitor pode fazer testes equivalentes trocando, por exemplo, “Maria não” por um sujeito negativo como “ninguém” e conferir que o resultado é o mesmo: acarretamento para baixo.
Mas, além da negação, há outros contextos em que a direção do acarretamento se inverte e passa a ser na direção do subconjunto. Um desses contextos é o das sentenças condicionais, vistas na próxima subseção.
4.2 Sentenças condicionais
Peguemos os mesmos exemplos em (15), em que há acarretamento para cima, e coloquemos essas frases em um contexto de orações condicionais, como em (17).
(17) a. Se Maria viajou, os pais delas vão ficar irritados.
b. Se Maria viajou para São Paulo, os pais delas vão ficar irritados.
c. Se Maria viajou de carro para São Paulo, os pais delas vão ficar irritados.
Vimos que as sentenças em (15) acarretavam “para cima”, na direção do superconjunto. Logo, o esperado é que as sentenças em (17) tivessem o mesmo comportamento. Mas, se você reparar bem, não é o que ocorre. Em (15), a sentença (c) acarreta a sentença (b). Porém, em (17), (c) não acarreta (b). (17c) expressa uma relação em que a irritação dos pais está condicionada a algo bastante específico: à viagem de Maria para São Paulo de carro. Dizer que (17c) é verdadeira significa dizer que esse condicionamento é verdadeiro. Significa que eles ficarão irritados se isso (tudo) ocorrer.
Notem que esse condicionamento não implica o condicionamento em (17b). Se os pais ficariam irritados com a viagem de Maria de carro para São Paulo, não necessariamente eles ficariam irritados (apenas) com a viagem de Maria para São Paulo. Talvez eles não ficassem irritados se a viagem fosse de avião, por exemplo. A mesma coisa pode ser dita sobre a relação entre (17c) e (17a). Se o condicionamento em (17c) é verdadeiro, não necessariamente é verdadeiro que os pais ficariam irritados com uma viagem de Maria (digamos, para qualquer outro lugar).
O leitor também pode perceber a mesma coisa entre (17b) e (17c).
Enfim, nas sentenças em (17) não há acarretamento do subconjunto para o superconjunto. Não há acarretamento para cima.
Se testarmos o acarretamento na direção inversa, de (17a) para (17c), teremos um resultado bem diferente. Se (17a) for verdadeira, ou seja, se os pais ficarem irritados se Maria viajar, eles também ficarão irritados se Maria viajar para São Paulo e/ou se Maria viajar de carro para São Paulo. Todos os subconjuntos do evento de viajar satisfazem a condição descrita em (17a). Temos, portanto, nas sentenças condicionais uma inversão das relações de acarretamento, com a ocorrência de acarratamento para baixo, do superconjunto para o subconjunto.
4.3 Alguns casos de modificação do sujeito
Outros casos de acarretamento para baixo ocorrem quando o próprio sujeito expressa um conjunto de indivíduos ao invés de um indivíduo específico. Todos os exemplos dados até agora tinham como sujeito nomes próprios, que denotam um indivíduo único. Mas as frases das línguas também podem ter como sujeito expressões que denotam elas mesmas conjuntos. Nesse caso, pode ocorrer acarretamento para baixo a depender do tipo de modificadores acrescentados ao sujeito.
Vejamos os exemplos abaixo, em que a diferença entre as sentenças não está no predicado, mas no sujeito.
(18) Cachorros gostam de brincar.
(19) Cachorros grandes gostam de brincar.
Em (18), o sujeito não é um cachorro específico, mas o conjunto de cachorros. O sujeito de (19) expressa um subconjunto dos cachorros, a saber, o subconjunto dos cachorros grandes. A sentença (18) expressa que o conjunto de cachorros está incluído no conjunto de indivíduos que gostam de brincar. E (18) acarreta (19), porque é impossível que um subconjunto dos cachorros (como cachorros grandes) não esteja dentro de qualquer superconjunto que abarque cachorros, como ilustrado na Figura 3. Temos, então, um acarretamento na direção do superconjunto para o subconjunto, portanto, acarretamento para baixo.
Figura 3: Direção do acarretamento para baixo
(Representação compatível com a veracidade da sentença 18)
O leitor deve ter em mente que o inverso não ocorre: a sentença (19) não acarreta a sentença (18). É perfeitamente possível que cachorros grandes gostem de brincar, mas que haja outros (subconjuntos de) cachorros não gostem, como ilustra a Figura 4.
Figura 4: Direção do acarretamento para baixo
(Representação compatível com a veracidade da sentença 19)
Note também que não é qualquer modificação do sujeito que provoca acarretamento para baixo. A sentença (18) não acarreta (20) (que, inclusive, é uma frase anômala), pois “cachorros de pelúcia” não é nem subconjunto nem superconjunto de “cachorros”. No caso, então, não acarretamento em direção alguma entre as duas sentenças.
(18) Cachorros gostam de brincar.
(20) #Cachorros de pelúcia gostam de brincar.
Também não há acarretamento entre (21) e (22), que contém o adjetivo “falso”, que tem um comportamento diferente dos outros tipos de adjetivos, um tema que escapa aos propósitos desse texto.
(21) Diamantes foram roubados.
(22) Diamantes falsos foram roubados.
Ainda com relação à modificação do sujeito, há alguns quantificadores que geram acarretamento para baixo. O quantificador “todos” no sujeito, por exemplo, acarreta para baixo. Mais especificamente, acarreta “alguns”, “algum” e “um”, como nos exemplos em (23) e (24).
(23) a. Todos os alunos chegaram atrasados.
b. Alguns alunos chegaram atrasados.
(24) a. Todos os alunos chegaram atrasados.
b. Algum/um aluno chegou atrasado.
A sentença (23a) acarreta (23b)[2]. O quantificador “alguns” representa um subconjunto de “todos”. Assim, “alguns alunos” é um subconjunto de “todos os alunos”. Portanto, se o conjunto de todos os alunos tem uma propriedade P, então qualquer subconjunto de alguns alunos também tem a propriedade P. Algo semelhante ocorre também entre “todos” e “algum”, com a diferença de que “algum” indica um subconjunto unitário.
NOTAS DE RODAPÉ
[1] Note que as sentenças foram ordenadas para criar o efeito visual “de cima para baixo”, mas não é a ordem de apresentação destas que faz com que o acarretamento seja “para cima”, mas sim o fato de que o conjunto de indivíduos que viajaram para São Paulo ontem é um subconjunto dos indivíduos que viajaram para São Paulo que, por sua vez, é um subconjunto dos indivíduos que viajaram. Ordenar diferentemente as sentenças impediria a representação visual didática, mas não mudaria a natureza do acarretamento.
[2] Se todos chegaram atrasados, então necessariamente alguns chegaram atrasados. (Note que o contrário é falso: se alguns chegaram atrasado, não é necessariamente o caso de que todos chegaram atrasados.)
Do ponto de vista pragmático, talvez seja estranho que um falante pronuncie a sentença (14) em uma situação em que (13) seja verdadeira, por causa da Máxima Conversacional da Quantidade, que leva o ouvinte a pensar: “Se ele disse ‘alguns chegaram’ ao invés de ‘todos chegaram’, que é a informação mais precisa, então ‘todos chegaram’ não devem ser o caso”. Mas isso não é o conteúdo semântico de (14). Esse estranhamento quanto à precisão ou pertinência contextual da informação não anula a relação semântica básica e as relações de verdade.