Modalidade: o sistema de verbos modais do português brasileiro

Neste texto vamos falar um pouco sobre cinco tipos de modalidade proposicional, a saber: epistêmica, deôntica, dinâmica (circunstancial), teleológica e bulética (bulomaica). Também vamos falar sobre os verbos modais utilizados no português brasileiro para expressar esses cinco tipos de modalidade.

O QUE É MODALIDADE

A modalidade é uma categoria gramatical, paralela a tempo e aspecto, através da qual os falantes expressam julgamentos sobre o conteúdo e o status das proposições e que se manifesta através de elementos linguísticos como verbos auxiliares, morfemas flexionais e advérbios.

Em um sentido mais amplo, a modalidade diz respeito a vários tipos de avaliações subjetivas do falante quanto às sentenças enunciadas. Em um sentido mais restrito, diz respeito a julgamentos de possibilidade e de necessidade do conteúdo das proposições.

Neste texto, trataremos desse recorte mais específico, uma vez que a perspectiva mais ampla se depara com alguma vagueza conceitual e com problemas na descrição da interação entre diferentes tipos de modalidade numa mesma sentença/proposição.

Dentro da visão mais restrita, adotada, por exemplo, pela Semântica Formal, a modalidade ainda pode ser classificada em vários tipos distintos, como epistêmica, deôntica, dinâmica (ou circunstancial), teleológica e bulética (ou bulomática).

MODALIDADE EPISTÊMICA

A modalidade epistêmica expressa julgamentos sobre o status factual da proposição, sua veracidade, com base nas evidências disponíveis. Uma sentença como (1a) descreve um evento ou estado do mundo, podendo ser verdadeira ou falsa. As sentenças (1b) e (1c), por outro lado, trazem o mesmo conteúdo proposicional de (1a), mas adicionam julgamentos que indicam uma probabilidade baixa ou alta de (1a) ser verdadeira.

(1)  a. João está dormindo.
       b. João pode estar dormindo. (possibilidade epistêmica)
       c. João deve estar dormindo. (necessidade epistêmica)

Em outras palavras, (1b) expressa uma conclusão possível a respeito da situação (possibilidade epistêmica), enquanto (1c) expressa uma conclusão necessária ou, ao menos, a conclusão mais provável (necessidade epistêmica).

(Mais sobre modalidade epistêmica adiante)

MODALIDADE DEÔNTICA

A modalidade deôntica exprime julgamentos de permissão, obrigação e proibição, condicionadas por fatores externos ao indivíduo como algum sistema moral, legal ou qualquer outra fonte de autoridade. A sentença (2b) expressa uma permissão dada por uma autoridade, possivelmente pelos pais de João, constituindo um caso de possibilidade deôntica. (2c), por outro lado, expressa uma obrigação imposta a João, uma necessidade deôntica.

(2) a. João fez/faz/está fazendo/vai fazer a lição de casa.
      b. João pode fazer a lição (depois de brincar). (permissão / possibilidade deôntica)
    c. João deve fazer a lição (antes de brincar). (obrigação / necessidade deôntica)

(Mais sobre modalidade deôntica adiante)

MODALIDADE DINÂMICA

A modalidade dinâmica ou circunstancial expressa capacidade ou habilidade, como em (3a), ou disposição, como em (3b), que emana dos fatores condicionantes internos aos indivíduos ou situações. Em ambos os exemplos, temos possibilidade dinâmica.

(3) a. João pode prender a respiração por 4 min.        (possibilidade dinâmica)
       b. Esse prédio pode cair a qualquer momento.     (possibilidade dinâmica)

(Mais sobre modalidade dinâmica adiante)

 

MODALIDADE TELEOLÓGICA

Esses são os três principais tipos de modalidade citados na literatura, mas outros também podem ser identificados, como a modalidade teleológica, que codifica possibilidade ou necessidade em relação a um fim ou objetivo delimitado, como nos exemplos em (4), em que as opções são delimitadas em função do objetivo ou meta previamente definida de se chegar ao aeroporto.

(4) a. Para chegar ao aeroporto, você pode pegar a Avenida Paralela (ou a Oceânica).                          (possibilidade teleológica)
      b. Para chegar ao aeroporto a tempo, você deve pegar a Avenida Paralela (pois a Oceânica está interditada).              (necessidade teleológica)

(Mais sobre modalidade teleológica adiante)

 

MODALIDADE BULÉTICA

Outro tipo de modalidade menos citado é a bulética ou bulemática, que expressa possibilidade ou necessidade em função dos desejos do falante. Nos exemplos em (5), o falante está expressando o seu desejo de que chova amanhã ou de que alguém seja fisicamente punido por algo que fez.

(5) a. Bem que podia chover amanhã!                       (possibilidade bulética)
       b. Ele devia levar um murro pelo que fez.         (necessidade bulética)

(Mais sobre modalidade bulética adiante)

O quadro abaixo resume o sistema de verbos modais visto até aqui. Nas próximas seções, vamos enriquecer mais esse esquema.

 

 

OUTROS VERBOS MODAIS: “TER QUE” x “DEVER”

Nos exemplos vistos até aqui, poder e dever são neutros quanto ao tipo de modalidade, diferindo entre si apenas na força modal que expressam: possibilidade ou necessidade. O tipo modal é definido pela interação do verbo com os demais elementos da frase e do contexto linguístico e extra-linguístico.

Ter que e dever deônticos

Além de poder e dever, dois outros verbos auxiliares também expressam valores modais no PB. O primeiro é a lexia ter que (ou ter de), que tipicamente codifica o valor de necessidade deôntica, como em (6), alternando com dever.

(6)    a. João tem que fazer a lição (antes de brincar).   (necessidade deôntica)
          b. João deve fazer a lição (antes de brincar).          (necessidade deôntica)
      c. A plateia tem que ficar em silêncio durante o debate.     (necessidade deôntica)
    d. A plateia deve ficar em silêncio durante o debate.   (necessidade deôntica)

Por um lado, ter que parece expressar um valor mais forte do que dever, como se pode ver no par em (7), em que a oração com dever pode ser reforçada por outra com ter que, mas o inverso parece inadequado (cf. SCARDUELLI, 2011, p. 63). Esse fato pode ser descrito em termos de necessidade fraca (codificada por dever) versus necessidade forte (codificada por ter que).

(7) a. Paulo não só deve lavar os pratos, como tem que.
       b. #Paulo não só tem que lavar os pratos, como deve.

(Obs.: o símbolo # indica que a sentença tem algum tipo de anomalia semântica)

Por outro lado, ter que parece estar substituindo dever. Em contextos coloquiais, com valor deôntico, ter que é mais natural e produtivo do que dever, que, por sua vez, é mais típico de linguagem formal, como leis e textos oficiais (cf. PESSOTTO, 2014, p. 59), como se pode ver no contraste em (8).

(8)    a. Os eleitores devem cadastrar a biometria até o final do mês.
          b. Os eleitores têm que cadastrar a biometria até o final do mês.

Ter que e dever teleológicos

O modal ter que também ocorre facilmente em contextos teleológicos, como em (9), que (para muitos falantes) soa até mais natural num uso coloquial do que (4b) com dever.

(9) Para chegar ao aeroporto a tempo, você tem que pegar a Avenida Paralela (pois a Oceânica está engarrafada). (necessidade teleológica)

Ter que e dever buléticos

Semelhantemente, ter que pode ocorrer em contextos buléticos, como em (10), e em contextos dinâmicos, como em (11). Exemplos como em (11) são importantes, pois a literatura sobre modalidade pouco fala sobre a expressão de necessidade dinâmica, o que se pode perceber inclusive pelas definições dadas, que focam mais no aspecto da expressão da capacidade ou habilidade.

(10) a. Eu tenho que comprar aquele carro de qualquer jeito! (necessidade bulética)
         b. A gente tem que ganhar esse sorteio! (necessidade bulética)

(11)  a. Eu tenho que ir ao banheiro. (necessidade dinâmica)
      b. O paciente tem que fazer essa cirurgia imediatamente. (necessidade dinâmica)

É importante notar que a troca de ter que por dever em (10) e (11) não parece adequada, provocando mudança na interpretação das sentenças. Os exemplos em (12) soam como epistêmicos, indicando certeza e não desejo. (13a) soa como necessidade deôntica, como uma imposição externa, o que torna, inclusive, o exemplo pouco plausível. E (13b) parece ambíguo entre necessidade epistêmica (a cirurgia já está marcada e tudo está em preparação) ou deôntica (se a frase é usada como uma ordem do médico).

(12) a. Eu devo comprar aquele carro de qualquer jeito! (necessidade epistêmica)
b. A gente deve ganhar esse sorteio! (necessidade epistêmica)

(13) a. #Eu devo ir ao banheiro. (necessidade deôntica)
    b. O paciente deve fazer essa cirurgia imediatamente. (necessidade epistêmica / dinâmica)

Parece que o verbo dever só pode ocorrer com valor dinâmico se vier flexionado no pretérito imperfeito ou no futuro do pretérito (casos em que é ambíguo com uma interpretação deôntica), como mostra o contraste em (14). Scarduelli (2011), por exemplo, trabalha com a hipótese de que deve e devia são dois modais diferentes, com especializações distintas. Ideia semelhante existe em Pessotto (2011) para as formas pode e podia.

(14) a. Eu devia/deveria ir no banheiro (logo/antes de sairmos). (necessidade dinâmica)
b. Eu devia/deveria ter ido no banheiro (logo/antes de sairmos). (necessidade dinâmica)
c. # Eu devo ir/ter ido no banheiro (logo/antes de sairmos). (necessidade dinâmica)

Por outro lado, o uso de ter que no contexto epistêmico é bem mais raro. Há autores que consideram que esse modal não ocorre na modalidade epistêmica (cf. PESSOTTO, 2014). Algo que ilustra bem esse fato é que os exemplos com dever em (6) podem facilmente receber interpretações epistêmicas, equivalentes a (15). Essa interpretação epistêmica não parece ser possível para as contrapartes com ter que em (6).

(15)       a. (Pelo que sei de João) É provável que ele (sempre) faça a lição antes de brincar.
        b. (Pelo que sei sobre esse local) A plateia provavelmente fica em silêncio durante o espetáculo.

Ter que e dever epistêmicos

Lunguinho (2010, p. 122), por outro lado, assume que ter que pode expressar modalidade epistêmica, como no exemplo (16), retirado do texto do autor. Também nesse caso, o ter que parece ter um valor mais forte do que dever. Enquanto dever expressa a conclusão mais provável diante das circunstâncias, ter que parece expressar a única conclusão possível no cenário.

(16) (Em vista das evidências disponíveis) Pode/deve/tem que haver alguém em casa.

Ainda assim, exemplos de ter que em contexto epistêmicos parecem ser menos frequentes e mais difíceis de serem formulados sem haver ambiguidade com outros tipos de modalidade.

 

OUTROS VERBOS MODAIS: “DAR PRA” x “PODER”

Dar pra e poder dinâmicos

Outro elemento verbal utilizado com o valor modal é a lexia dar para (cf. DUARTE, 2012; AUGUSTO, 2015), que expressa tipicamente possibilidade dinâmica, alternando com poder, em exemplos como (17) .

(17) a. Você pode falar mais baixo?
         b. Dá pra você falar mais baixo?
         c. João pode vencer essa corrida.
         d. Dá pra João vencer essa corrida.

Sintaticamente, esse modal se comporta de modo diferente dos demais, pois, apesar de também tomar um infinitivo como seu complemento, não exige o alçamento de um argumento do verbo principal para a posição de sujeito matriz.

De fato, o alçamento do sujeito cancela a leitura modal e dispara uma leitura aspectual, descrevendo o início de um hábito (cf. COELHO; SILVA, 2014) , como em (18a), equivalente a (18b)

(18) João deu pra caminhar na praia todo dia de manhã. (leitura aspectual) = ‘João começou a caminhar na praia todo dia de manhã’

Dar pra e poder deônticos

Outra diferença é que dar para não parece ser produtivo em outros tipos de modalidade além da dinâmica. É mais difícil formular exemplos deônticos, teleológicos e buléticos com esse verbo. Ainda assim, é possível formular os seguintes exemplos teleológicos em (19), um dado que ainda tem certo sabor dinâmico/circunstancial.

(19) Para chegar ao aeroporto, dá pra (você) pegar a Avenida Paralela (ou a Oceânica). (possibilidade teleológica)

Exemplos deônticos, embora difíceis, também são possíveis em alguns contextos, como em (20). Tais exemplos parecem extensões dos usos dinâmicos.

(20) a. Professor, dá pra entregar o trabalho na próxima semana? (possibilidade deôntica)
         b. Pela lei, dá pra andar com a habilitação por até um mês depois de vencida. (possibilidade deôntica)

Dar pra e poder buléticos

Exemplos buléticos, no entanto, são bem difíceis de serem formulados com dar para, como mostram os dados em (21), em que a interpretação bulética parece falhar em favor de uma interpretação dinâmica.

(21) a. #Dava pra chover amanhã. (possibilidade bulética)
         b. #Dava pra ele levar um murro pelo que fez. (necessidade bulética)

Outra diferença é que, ao contrário do que se vê em dever e ter que, não parece haver diferença de força modal entre dar para e poder, ambos expressando simplesmente o valor de possibilidade. Há sim uma diferença em termos de registro, com dar para sendo mais coloquial do que poder, mas ainda assim não parece ser o caso de poder estar se tornando restrito a contextos formais. Este verbo ainda é produtivo na fala coloquial.

RESUMINDO

Em resumo, no português brasileiro, há uma alternância entre dever e ter que, expressando necessidade, especialmente em contexto deôntico, e uma alternância entre poder e dar para, expressando possibilidade, especialmente em contexto dinâmico. As lexias ter que e dar para (especialmente esta última) são bem mais recentes na língua do que suas contrapartes. 

O quadro abaixo resume tudo o que vimos até aqui sobre o sistema completo de verbos modais do português brasileiro:

 

 


(Fonte: Adaptação da introdução do GONÇALVES, Maciele; CAVALCANTE, Rerisson. Verbos modais na comunidade de Sapé (BA). A sair na Revista de Estudos Linguísticos e Literários.)

Gramática como tecnologia

LINGUÍSTICA X GRAMÁTICA: A CONVERSA MOLE DE SEMPRE

É muito comum entre os estudantes e mesmo entre professores da área de Letras e de Linguística uma visão extremamente negativa da Gramática Tradicional e de tudo o que diga respeito à padronização da linguagem culta.

Isso resulta em parte da necessidade inicial de estabelecer claramente nos novos estudantes a diferença de método, de objetivos e de escopo entre a Linguística e a Gramática, entre a postura descritiva e a prescritiva. Mas isso acaba assumindo um tom extremamente exagerado, algo que mostra justamente o contrário: a necessidade de combater a Gramática Tradicional surge justamente da falta de segurança quanto às diferenças entre os escopos das duas atividades. Ou da falta de auto-estima da pessoa com relação à área que escolheu para seguir: ela precisa desmerecer a Gramática para exaltar a sua área e a si mesma.

OS “ERROS” DA GRAMÁTICA

Apenas um exemplo. É extremamente comum que professores de Letras/Linguística queiram demonstrar a superioridade da Linguística listando descrições ou definições problemáticas ou falhas que se encontram nas gramáticas tradicionais.

Um dos exemplos favoritos é de como a definição de SUJEITO como “ser sobre o qual se fala” pode ser questionada, já que nem sempre o sujeito é realmente o assunto da frase em que ocorre. No discurso simplista do linguista fazendo auto-promoção para alunos ingênuos do primeiro semestre do curso, esse tipo de imprecisão real ou fictícia nas gramáticas tradicionais prova de modo irrefutável a superioridade da Linguística sobre a Gramática, ignorando completamente que ambas têm objetivos muito distintos entre si.

O problema desse tipo de exemplo é claro para qualquer um com um pouco mais de conhecimento real da ciência da linguagem: é que a mesmíssima crítica também vale para todos os conceitos que existem no universo da Linguística. É praticamente impossível achar algum conceito da Linguística que não seja também problemático e digno de reformulação ou mesmo de abandono.

GRAMÁTICA COMO VANTAGEM TECNOLÓGICA

Um pequeno antídoto contra esse ódio à tradição gramatical pode ser encontrado no livro “A revolução tecnológica da gramatização” de Sylvain Auroux, pesquisador em história das ideias linguísticas.

O objetivo dele não é fazer uma apologia da Gramática Tradicional, mas ele mostra que a invenção de gramáticas e de dicionários (enfim, a tradição gramatical como um todo,que ele denomina de gramatização) deve ser vista como uma REVOLUÇÃO TECNOLÓGICA no mesmo sentido da revolução industrial, da invenção dos computadores etc.

Assim como a própria escrita, gramáticas e dicionários são tecnológicas que concederam vantagens enormes para as sociedades em que surgiram. Estas invenções contribuíram para o seu progresso econômico e material das sociedades que a adotaram.

Esta obra sequer é nova. A edição original é de 1992. É curioso como existe um movimento forte na linguística brasileira de pintar a tradição gramatical como algo intrinsecamente nocivo, que promove atraso e pobreza, quando trabalhos sérios e renomados como o de Auroux mostram exatamente o contrário.

Fica aqui apenas a recomendação de leitura desse livro.

Linguística, linguagem e “o importante é a comunicação”

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Um dos maiores estereótipos sobre a Linguística é a ideia de que, para esta, “o importante é (apenas) a comunicação“. Em geral, essa ideia está associada ao marcosbagnismo em seu movimento de repúdio à gramática tradicional, de combate ao “preconceito linguístico” e de rancor contra a norma padrão.

Há pelo menos dois problemas aí. Primeiro, apesar de defender várias ideias questionáveis, Bagno não defende que a única coisa que importa na língua é a comunicação. Ele até escreveu um pequeno texto na internet, muitos anos atrás, criticando essa posição. Afinal, isso seria renegar, por exemplo, toda a dimensão artística e estética da linguagem.

Mas o que eu realmente queria apontar é que não existe nenhum consenso dentro da linguística em geral quanto à ideia de que a função BÁSICA (mas não única) da linguagem seja a comunicação.

Existe há quase dois séculos a discussão se a função básica da linguagem é a comunicação OU a expressão do pensamento.

Os comparativistas do século XIX acreditavam que a expressão do pensamento era o fato básico da linguagem, sendo a comunicação um aspecto secundário e derivado. Na atualidade, os gerativistas (chomskyanos) também acreditam nisso.

O estruturalismo da primeira metade do século XX é quem assume ferrenhamente a ideia de que a função básica da linguagem é a comunicação. Saussure, essencialmente, vê as línguas como sistemas simbólicos arbitrários, logo, sistemas voltados para transmitir informações/mensagens, voltados para a comunicação.

Outras visões teóricas, como alguns funcionalismos, rejeitam enfaticamente essa ideia estruturalista de que a função da linguagem é comunicação, a transmissão de informações, justamente porque isso pressupõe uma visão esquemática, linear e “bonitinha” demais do processo de comunicação, apenas como atos de codificação e decodificação de mensagens, anulando completamente vários aspectos da interação linguística.

Por isso, os funcionalistas falam da língua como meio de interação social. Mesmo quando eles dizem que é preciso estudar a “competência comunicativa” dos falantes ou estudar “a língua em situações reais de comunicação”, o que eles querem apontar é justamente que a comunicação real é uso da língua como meio de interação, não de comunicação no sentido mais seco e direto.

Curiosamente, porém, muitos estudantes de Letras (e até professores…) imaginam que é exatamente o contrário: que os tolos estruturalistas achavam que a linguagem era expressão do pensamento, mas que as teorias mais modernas vieram mostrar que, na verdade, a linguagem era meio de comunicação. Mas isso é um outro assunto.

Enfim, o lema de que “o importante é a comunicação” é apenas uma enorme distorção das ideias da linguística, distorção provocada pelo desejo de simplificar demais para os estudantes a visão real da Linguística: a ideia de que todas as línguas e dialetos são sistemas altamente complexos que não podem ser desprezados por influência de questões políticas e de estereótipos.

Essa confusão também é estimulada pela vontade de instrumentalizar a ciência da linguagem como uma arma de luta política e de promoção de luta de classes, com a tentativa de associar a norma padrão à opressão (capitalista), criando a tolice de que a completa rejeição à norma padrão e à tradição e análise gramatical seria uma espécie de libertação.

Na prática, algum tipo de norma linguística é necessária em sociedades complexas, não por causa do sistema ser capitalista, mas justamente por a sociedade ser complexa, diversificada e altamente dependente dos meios de escrita. Mesmo uma suposta versão socialista  da sociedade atual continuaria tendo o mesmo grau de complexidade e continuaria, por isso, precisando de algum tipo de norma linguística.

Aliás, numa sociedade socialista, em que a planificação estatal da produção e da vida em geral é elemento essencial, a existência de uma norma linguística seria muito muito muito mais necessária do que na sociedade capitalista, em que há muito mais espaço para o caos construtivo.

Mas esse é um outro assunto. O ponto principal aqui é: a linguagem humana não pode ser reduzida apenas a uma questão de “o importante é a comunicação”.

– Rerisson Cavalcante de Araújo

Professor de Linguística da Universidade Federal da Bahia

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Artigo: “Vocabulário psicótico”

Sugestão de leitura:

Vocabulário Psicótico

No estudo da linguagem humana, a distinção mais antiga e mais fundamental é entre signo, significado e referente. Signo é um sinal, visual , sonoro ou qualquer outro, que indica uma idéia, uma intenção, e a representa na esfera mental. Significado é um conjunto de signos que expressa a intenção subjetiva contida no signo. Referente é o objeto, a coisa, o elemento do mundo real — objetivo ou subjetivo — a que o significado, e portanto também o signo, se refere. Se um sujeito sabe de cor e salteado a definição de “vaca”, mas, quando lhe mostramos uma vaca, ele não sabe distingui-la de um tatu, de uma caixa de fósforos ou de um reator atômico, o signo que ele usou corresponde apenas a um significado, a uma intenção subjetiva, mas a nenhum elemento da realidade.

Na discussão política, e em geral na linguagem jornalística, o uso de significados sem referentes é um hábito auto-hipnótico com que o emissor da mensagem persuade a si mesmo, e ao seu público, de que está dizendo alguma coisa quando não está dizendo absolutamente nada.

Se ele faz isso por ignorância ou malícia é indiferente, pois a malícia não passa de uma ignorância fingida ou planejada.

Um dos exemplos mais característicos é o uso corrente, onipresente e obsessivo, da expressão “instituições democráticas”. Entende-se por isso as entidades e instituições fundadas em leis e constituições que instituem o sistema representativo, bem como o império das leis que o controlam. Entende-se que essa expressão define um treco chamado “democracia”, diferenciando-o dos regimes ditatoriais, tirânicos ou autoritários, onde governantes que não representam senão a si mesmos fazem o que bem entendem e não estão submetidos à lei nenhuma. No Brasil, os defensores das “instituições democráticas” apresentam-se como protetores da liberdade e do povo, em oposição aos adeptos de uma “ditatura militar”, representados, segundo se diz, pelo atual presidente da república, seus filhos, amigos e adeptos.

Até aí, tudo está muito claro, mas com essa conversa não saímos do reino dos significados verbais. Não tocamos no referente. Se agora buscamos os entes da realidade que a linguagem corrente associa a esses termos, não os encontramos em parte alguma. Em primeiro lugar, os adeptos da “ditadura” que eles chamam também de “intervenção militar” ou mesmo de “intervenção militar constitucional”, existem realmente mas são raros e não têm a menor influência sobre a massa dos partidários do presidente, os quais se apresentam como uma massa firmemente decidida a lutar pelos seus próprios objetivos, apoiando o presidente, é certo, mas sem dele receber nem mesmo uma instrução ou palavra de ordem, quanto mais uma voz de comando. Isso quer dizer que, quando se apresentam como defensores da “democracia” contra o perigo do “autoritarismo militar”, os adeptos das “instituições democráticas” fingem lutar contra um inimigo imaginário para não ter de declarar qual o inimigo real que estão combatendo e desejam destruir. Esse inimigo não é nenhuma “ditadura”, mas a massa popular, a indignação populista que ocupa as ruas e deseja impor a sua vontade soberana à minoria política, jornalística e universitária dos “defensores da democracia”, bem como aos eventuais apóstolos da “ditadura”.

Mas a democracia, salvo engano, não se define pela presença de tais ou quais “instituições”, e sim por ser “o governo do povo, pelo povo e para o povo”, isto é, o governo em que as instituições, quaisquer que sejam, estão sob o controle do povo e não o povo sob o controle delas.

Quando se voltam contra a massa popular em nome das “instituições democráticas”, os defensores destas últimas estão simplesmente invertendo o sentido da democracia, fazendo dela o império absoluto de “instituições” sob as quais o povo não tem e não pode ter nenhum poder nem meios de ação. Não espanta que, ao sair da cadeia, o apóstolo máximo as “instituições democráticas” e inimigo jurado do “autoritarismo fascista”, sr. Luiz Inácio Lula da Silva, não encontre nenhum respaldo popular e busque, em vez dele, o apoio da classe militar, personificação da “ditatura”.

A linguagem dos debates públicos brasileiros é um conjunto de inversões psicóticas em que cada falante não trata senão de ludibriar-se a si mesmo para melhor poder ludibriar os outros.

– Olavo de Carvalho

Publicado em: https://pages.brasilsemmedo.com/vocabulario-psicotico/