Uma conversa sobre linguística e norma padrão

Nota prévia

O texto abaixo é a transcrição de uma conversa que ocorreu em meio virtual em 27 de março de 2021 sobre o tema do “certo ou errado” na língua. O texto sofreu algumas edições para deixar certos pontos mais claros e alguns acréscimos para desenvolver aspectos adicionais. Muitos outros acréscimos poderiam ter sido feitos, para discutir outros pontos pertinentes, as optei por não me estender muito mais.

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Uma conversa sobre linguística e norma padrão

Heitor Oliveira[1]: Quero que você me dê orientações: estão certos os linguistas de esquerda quando afirmam que não há corrupção da língua e que é errado ensinar que existe erro gramatical?

Rerisson Cavalcante[2]:Vamos colocar da seguinte forma: qual é o modo correto de falar:

(1) “o poeta ama a garota”
ou
(2) “poeta puellam amat”?

Heitor Oliveira: (1) é correto no português, (2) no latim.

Heitor Oliveira: Mas isso não é suficiente. Por que não posso dizer que “encontrei ele na praia” é errado?

Rerisson Cavalcante: Mas o português é o latim que se modificou. Se as modificações do latim são “degradação”, então, não existem formas corretas em português. Todo o português seria simplesmente latim falado errado.

Rerisson Cavalcante: Você pode dizer sim que “encontrei ele” é errado, mas o critério para dizer isso não é linguístico. Não há na própria língua um carimbo natural que diz que esse “ele” é errado (ou certo) nessa posição. O critério para dizer isso é estético ou literário ou social. É uma ação humana sobre a língua, não uma informação intrínseca da própria língua. É nesse sentido específico que “não existe certo ou errado na língua”.

Heitor Oliveira: Certo. Sei. Então, como justificar o ensino tradicional do português ante os teóricos linguistas?

Rerisson Cavalcante: O problema dos meus colegas linguistas é o problema típico de todo intelectual moderno: eles acham que o universo inteiro se resume à disciplina deles. Eles reconhecem que a língua em seu estado mais natural é a língua do dia a dia, mas daí eles concluem que só essa é legítima.

É preciso perguntar a eles, por exemplo: “então, a literatura não tem valor para vocês?”. Se só a fala do cotidiano é legítima, estamos dizendo que todas as manifestações literárias e artísticas com a língua (que são elaborações culturais, enriquecimentos culturais) seriam ilegítimas. Ninguém sério irá concordar com isso.

[Acréscimos posteriores] Até Marcos Bagno, o maior inimigo nacional da língua padrão, discorda da ideia de que “o importante é simplesmente comunicar”, frase curiosamente atribuída a ele por nove em cada dez bagnistas… Ele já escreveu um pequeno texto uma vez criticando essa visão e apontando que a língua envolve muito mais do que apenas codificar e transmitir informações. [Fim dos acréscimos]

É preciso, portanto, mostrar que existem outros valores humanos reais além dos puramente linguísticos. A norma culta ou padrão é uma elaboração cultural assim como a arte. E a norma não é baseada na “fala dos ricos”, como muitas vezes se diz de modo simplificado demais nas aulas de linguística. Ao contrário, são alguns linguistas que querem trocar a norma padrão baseada na alta literatura (escrita por pessoas de todas as classes e cores) pela média sociolinguística da fala das classes mais ricas a partir de trabalho de descrição da fala dessas classes.

[Acréscimos posteriores] Eu sempre lembro aos meus alunos que a norma padrão brasileira é baseada na obra de diversos autores, dentre os quais, autores negros, mulatos e pobres como e Cruz e Souza, Machado de Assis e Lima Barreto. Não é baseada na fala da família Odebrechet, nem na fala de líderes políticos como Lula e Bolsonaro, nem na fala dos donos das empresas de transporte público municipal.

Rerisson Cavalcante: Também é preciso mostrar que a norma padrão é uma necessidade em qualquer sociedade complexa. E em qualquer sociedade que quiser fazer troca extensiva de conhecimento escrito. Sem uma norma padrão, há apenas fragmentação dialetal que, com o tempo, transformará a fala de cada local em uma língua diferente.

Essa transformação é um processo perfeitamente natural, é algo lindo e espetacular para linguistas e antropólogos, mas, como tudo na vida, também tem seus efeitos colaterais, E o efeito colateral, no caso, é a perda de toda a capacidade de troca cultural entre cada local que antes falava a mesma língua.

[Acréscimos posteriores] Não precisamos ser contra esse processo nem cair na ilusão de que vamos conseguir impedi-lo. Não vamos. As línguas vão mudar. Mas, com uma norma padrão, mesmo com essa transformação ainda ocorrendo, ela poderá ocorrer ao lado de um tipo de bilinguismo, em que todos são capazes de alternar entre a fala local e a fala comum, bem como entre a fala local e a escrita comum.

Um dia, o português falado em Salvador e o português falado em Porto Alegre serão incompreensíveis entre si. Como se darão, então, as trocas culturais, artísticas, religiosas, filosóficas, políticas e científicas entre soteropolitanos e porto-alegrenses, entre cariocas e pernambucanos? Há apenas duas opções.

Ou será exclusivamente através de uma língua estrangeira, como o inglês, o francês ou chinês – ou melhor, a norma culta ou padrão do inglês, do francês ou do chinês, pois estes também já terão mudado bastante com o tempo…

Ou será com base na língua padrão nacional, com a qual o nosso povo ainda terá ligações históricas, afetivas, culturais.

Então, qual será a nossa língua de união nacional? (Alguns políticos, hoje, preferem – em troca de uma pequena comissão – que seja o chinês…).

A questão é simples: nós, brasileiros, passaremos a valorizar a nossa história, inclusive a nossa língua, ou viveremos apenas num presente eterno, incapazes de nos lembrarmos do que aconteceu anteontem? Se cada povo com memória cultural consegue conviver com prédios modernos ao lado de prédios históricos, tombados como patrimônio de todos, também podemos conviver coma língua do dia a dia e a língua padrão tomada como patrimônio histórico de todos nós. [Fim dos acréscimos]

Heitor Oliveira: Considerações muito pertinentes. Já havia pensado no absurdo de reduzir a norma culta à frequência de usos da classe mais rica.

Rerisson Cavalcante: Outro argumento recorrente que usam contra o ensino da língua culta ou padrão é que “a língua padrão é praticamente uma língua estrangeira para os alunos”. Bem, diante disso, a minha resposta é uma pergunta: “e quem disse que é ruim ser bilíngue?”.

[Acréscimos posteriores] Todas as escolas tentam ensinar aos alunos alguma língua estrangeira com a qual os alunos não têm nenhuma ligação histórica, como o inglês. Por que elas não podem ensinar a suposta “língua estrangeira” do seu próprio país, que é, por acaso, a “língua estrangeira” dos grandes escritores e artistas da sua própria cultura? Das leis e das ciências que foram registradas em sua própria sociedade? [Fim dos acréscimos]

Cleber Tourinho[3]: Sou sociolinguista. A academia não me dá espaço por falar exatamente o que Rerisson está dizendo e propor uma visão para além da dialética marxista (que é a base ideológica da disciplina).

A partir daqui, apenas outros acréscimos posteriores ao texto:

Rerisson Cavalcante: É muito comum alguns educadores dizerem que “a língua culta ou padrão é apenas uma velharia”. Certo. Mas sabem o que também era um monte de “velharias”? O Museu Nacional. Aquele que funcionava no Palácio Imperial de São Cristóvão no Rio de Janeiro.

Tudo ali era antigo. Inclusive, vários registros de línguas indígenas antigas. E tudo ou quase tudo ali foi perdido num incêndio. Mais de 20 milhões de itens do maior museu do país foram perdidos, porque os responsáveis por proteger e preservar aquele patrimônio cultural achavam que era mais importante cuidar exclusivamente das frivolidades do cotidiano, do dia a dia, do que preservar “velharias”.

Mas a vida humana real não é nem o apego exclusivo ao presente imediato nem uma prisão nas velharias do passado. A vida humana real é a junção dos dois. A convivência contínua do que somos hoje com o que fomos ontem.

Jogar todo o passado fora e focar apenas em um presente desmemoriado é um ideal revolucionário daqueles que acham que, se destruirmos tudo o que existe e recomeçarmos tudo a partir do zero, vamos construir uma sociedade muito melhor. Não é preciso muito argumento para perceber como isso é absurdo.

Isso não significa que a própria língua padrão não irá se adaptar com o tempo. Ela própria traz inúmeras opcionalidades que são escolhidas pelos falantes e escritores de acordo com o tipo de texto que fazem. Ela também incorporará aos poucos nuances novas, novas tradições linguísticas que irão ser somadas a ela com o tempo. O ponto principal é que isso não pode ser feito por meio de jogar tudo fora e recomeçar do novo a cada nova geração.

[1] Heitor Oliveira: professor de filosofia, graduando em Letras.

[2] Rerisson Cavalcante de Araújo: professor de linguística da UFBA, doutor em Letras pela USP, mestre em Letras pela UFBA.

[3] Cleber Tourinho: professor de língua portuguesa, mestre em Letras pela UFPB.

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